O mês de maio deste ano marcou os 200 anos do nascimento, na
antiga Prússia, do filósofo Karl Marx (1818-1883), considerado o idealizador do
que se conhece hoje como marxismo. Marx foi autor de duas obras muito
conhecidas, O Manifesto Comunista (1848) e O Capital (1867-1894),
que dão sustentação teórica para suas ideias. Para entender qual a relação
dessa cosmovisão com a narrativa bíblica, a Agência Adventista
Sul-Americana de Notícias (ASN) conversou com o doutor em Sociologia
Thadeu Silva.
Historicamente, Karl
Marx teorizou sobre a Economia (na famosa obra O Capital) e advogou a
ideia de que o progresso da sociedade se dá essencialmente por meio da luta de
classes e que há sempre a figura de quem domina e quem é dominado nesse
contexto. A que se deve o fato de suas obras ainda terem tanta repercussão,
inclusive fora da Economia?
Sem dúvida nenhuma, deve-se a uma combinação de temas que
tocam a emancipação do homem, teorias aparentemente verdadeiras e acessíveis a
pessoas não especialistas, escritas em linguagem simples e difundidas por
pessoas influentes, principalmente professores universitários.
Os temas de Marx tocam vários campos do conhecimento além da
Economia. Um apanhado exemplar é o primeiro capítulo de O Capital,
intitulado A Mercadoria, em que abre sua maior obra com quatro pilares do
seu pensamento: diz que a unidade básica do mercado (a mercadoria) é, na
verdade, a concretização das relações sociais injustas do capitalismo; diz que
o valor de uma mercadoria é definido pelo trabalho; afirma que o trabalho foi
explorado e subordinado pelo capital a ponto de reduzir o homem à condição de
coisa e argumenta que o mundo religioso é somente um reflexo do que é o
mundo real.
Junte-se a essas afirmações a primeira frase do primeiro
capítulo do Manifesto do Partido Comunista (“a história de toda a
sociedade até aqui é a história de lutas de classes”, pela qual diz que tal
luta teria sido o motor de desenvolvimento das sociedades), a 11ª tese sobre
Feuerbach (“os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras
diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”), sua previsão de que o
desenvolvimento do proletariado explodiria em uma revolução aberta e o
proletariado estabeleceria sua dominação pela derrubada violenta da burguesia.
Estas e outras tantas frases formam um conjunto de ideias que culpam as
condições injustas da sociedade pela desigualdade entre as pessoas, além de ser
praticamente uma convocação às pessoas para que lutem unidas contra o
capitalismo.
A luta de classes é um dos grandes temas de Marx e, também,
um dos que mais dano causou à humanidade. Por meio dele, alega que o
desenvolvimento da humanidade teria acontecido graças à briga infindável entre
quem tem dinheiro (dominadores) e quem tem força de trabalho (dominados) e ao
crescimento das forças produtivas. A aparente veracidade dessa alegação separa
as pessoas em dois grupos opostos, mediadas por um ódio crescente à medida que
a vida se torna mais difícil. O tom de justiça e de emancipação da obra de Marx
continua encantando gente em muitos lugares, especialmente em países cujas
populações ainda possuem baixa escolaridade, como os da América Latina e do
antigo bloco soviético.
É possível dizer que
as ideias de Marx ultrapassaram a questão da Economia e chegaram até a política
e à sociedade de maneira geral? O que você ressalta?
Certamente. Na verdade, se em algum momento Marx chegou a
esboçar uma teoria da sociedade ou da Economia, foi com intuito político. A já
referida 11ª tese contra Feuerbach sintetiza esse pensamento mostrando que,
para ele, a finalidade do conhecimento é fazer revolução. Política (e,
portanto, poder) era a intenção de Marx, expressa em cada um de seus escritos,
transferindo aos leitores seus objetivos. Não foi imediatamente, por exemplo,
que esquerdas políticas se apropriaram das ideias do alemão. Aliás, demorou
algum tempo para isso acontecer, mas, ao primeiro sinal de simbiose, eles se
tornaram portadores mais que adequados para sua difusão, a ponto de, hoje,
esquerdas políticas e marxismo serem indissociáveis.
Mas o êxito de Marx também deve ser entendido pela
perspectiva do humanismo, que já alcançava níveis impressionantes no século XIX
e ao qual se alinhavam os outros dois pais da escola da dúvida: Nietzsche e
Freud. Os três falaram de assuntos bem diferentes, mas compartilhavam da
premissa de o homem ser o centro da vida e dos valores. O humanismo se tornou
prevalente em cada campo do conhecimento. Auxiliado pelo relativismo (que alega
não haver certo nem errado, somente opções culturais), desviou os olhos da
humanidade do Deus Criador para o homem, colocou o conhecimento de Deus como
algo folclórico ou como pertencente a um período de ignorância da humanidade.
Estranhamente, este pensamento “pegou” e se tornou normal.
O materialismo de Marx também foi recepcionado por outros
campos, além da Economia. Materialismo é o ramo do conhecimento que diz que as
coisas é que criam as ideias, não o contrário. O pensamento de Marx passou por
uma fase de materialismo dialético e por outra chamada materialismo histórico,
cuja distinção aqui importa menos do que as suas consequências. Seu resultado
mais profundo é levar as pessoas a acharem que real é somente aquilo que é
material. Nesse sentido, as ideias nunca seriam reais. Admitida esta ideia,
passa-se a entender que todas as ideias derivam do dinheiro que uma pessoa
possui – o que não é verdade, mas foi exatamente o que o materialismo de Marx
causou. Viciou o pensamento a julgar a veracidade das coisas pela sua textura,
eliminando a condição de admitir a realidade de uma ideia. Isso é reduzir a
vida a somente uma de suas dimensões.
Em um de seus escritos, Marx afirmou que a “religião é o
suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como é o
espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo”. Seria uma
visão da religião como uma fuga do ser humano das suas responsabilidades?
A aversão de Marx pela religião (de modo geral), e pelo cristianismo
(de modo particular), se dá pelo fato de ser um obstáculo à implementação de
sua utopia. Por isso, usou de dois artifícios intelectuais para
ridicularizá-la. O primeiro foi dizer que a religião era algo inventado pelos
ricos para aliviar o sofrimento causado pelo capitalismo sobre os pobres. Em
segundo lugar, foi alegar que essas ideias eram falsa consciência imposta pela
classe dominante para defender e perpetuar a propriedade privada. É no primeiro
sentido que Marx via a religião como fuga das responsabilidades.
Marx tinha uma maneira ruim de tratar seu leitor: ao passo
que, por um lado, queria “abrir seus olhos” para a “verdade” dizendo que a
religião era uma armadilha da classe dominante, acusava o proletário de ser um
iludido, na pior acepção do termo, provocando-o a abandonar a fé. Assim Marx
tratava a classe pela qual ele desejava realizar a revolução.
Cristãos podem
conciliar as ideias marxistas com as crenças bíblicas ou isso é incompatível?
Por quê?
Cristianismo e marxismo são duas coisas opostas entre si,
impossíveis de serem conciliadas. As diferenças começam pela criação: a Bíblia
mostra que Deus é o Criador do homem, ao passo que, para Marx, foi o homem quem
construiu a ideia de Deus. Para Deus, o ser humano é a menina dos Seus olhos, a
luz do mundo e o sal da terra, reparador de brechas e restaurador de veredas,
membro da geração eleita, do sacerdócio real, da nação santa, do povo
adquirido, testemunha do Senhor, enquanto que, para Marx, o homem é o autor da
revolução contra o capitalismo.
De acordo com a Palavra de Deus, os pensamentos geram as
ações, o que é o perfeito e oposto ao que Marx diz. O mandamento de Deus é amar
os inimigos; o de Marx é destruí-lo. Deus diz que todos os males foram causados
pelo pecado; Marx diz que o que causa o mal são as estruturas injustas da
sociedade. Deus explica as ações humanas de acordo com a obediência dos homens
à Sua Palavra; Marx explica as ações pelo dinheiro e pelo poder.
O interesse dos dois é completamente oposto: o cristianismo
se interessa pela salvação do ser humano da condição de pecado, prega o
Evangelho, anuncia a volta de Jesus, chama atenção para Deus como a pessoa mais
importante da nossa vida, deseja viver na Cidade Santa com Cristo e os salvos e
baseia sua vida na Palavra de Deus. O marxismo se interessa pelo poder, em
tomá-lo das mãos da burguesia e passá-lo para os proletários; seu maior desejo
é uma sociedade sem classes neste mundo e baseia sua vida pela vontade. Como
poderiam ser compatíveis?
Por Felipe Lemos.
Fonte: Notícias Adventistas
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