Norman Cohn, em “The Pursuit of the Millenium”, assinala uma
característica proeminente de certas seitas gnósticas medievais: seus adeptos
sentiam-se tão intimamente unidos a Deus que se imaginavam libertos da
possibilidade de pecar. “Isto, por sua vez, os liberava de toda restrição. Cada
impulso que sentiam era vivenciado como uma ordem divina. Então podiam mentir,
roubar ou fornicar sem problemas de consciência.”
A continuidade essencial da visão gnóstica do mundo nas
ideologias messiânicas modernas — nazismo, fascismo, socialismo — é um dado
histórico bem estabelecido pelos estudos de Cohn, Voegelin, Billington e tantos
outros pioneiros que desbravaram o assunto desde a década de 30. É verdade que
esses estudos continuam quase desconhecidos do nosso “establishment”
universitário. Mas, quer o saiba ou não a elite intelectual de Catolé do Rocha,
o fato é este: uma linha de sucessão perfeitamente nítida vem das heresias
medievais aos revolucionários de 1789, a Marx, a Sorel, a Gramsci e a todos os
seus sucessores na missão auto-atribuída de “transformar o mundo”.
Ao longo dessa linha, a crença na própria impecância
essencial, derivada da certeza de união íntima a Deus, ao sentido da História,
aos ideais eternos de justiça e liberdade ou a qualquer outra autoridade
legitimadora transcendente — pois esta varia conforme a moda cultural, sem
mudar de função — é que lhes infunde, geração após geração, um sentimento
perfeitamente sincero de honradez e santidade no instante mesmo em que
mergulham no mais fundo da abominação e do crime.
Não se trata de vulgar hipocrisia, mas de uma efetiva
ruptura da consciência, que, elevando a alturas inatingivelmente divinas as
virtudes da sociedade futura que o indivíduo acredita representar desde já, o
torna “ipso facto” incapaz de julgar suas próprias ações à luz da moralidade
comum, ao mesmo tempo que o investe, a seus próprios olhos, da máxima
autoridade moral para condenar os pecados do mundo. Eis como as mais baixas
condutas podem coincidir com as mais altas alegações de nobreza e santidade.
Foi com perfeita sensação de idoneidade que, após o fim da
II Guerra, os marxistas continuaram discursando retroativamente contra a
tirania e o genocídio nazistas, ao mesmo tempo que superavam rapidamente esses
seus antigos concorrentes na prática da tirania e do genocídio.
Nas democracias, qualquer político vulgar flagrado em delito
menor perde a pose, entra em crise depressiva e faz deplorável figura ante o
olhar da multidão. É que não se imunizou previamente, por imersão nas águas
lustrais da autobeatificação ideológica, contra o sentimento de culpa. Acossado
pelas denúncias, ouve brotar desde dentro o clamor da sua própria consciência
moral que, longamente reprimida, retorna das sombras para condená-lo,
justamente no momento em que ele mais precisaria reunir suas forças para
defender-se dos adversários externos. Então ele vacila e cai. Foi assim que
caiu Nixon. Foi assim que caiu Collor.
Já o revolucionário, o militante, o malfeitor ideológico,
quando exposto às provas inumeráveis de seus crimes sangrentos e inumanos, se
sente revigorado, fortalecido, enaltecido. Pois esses crimes, para ele, não são
crimes: são sinais da bondade futura. Só assim se explica que homens que, por
onde quer que tenham subido ao poder, só espalharam morte, miséria e
sofrimentos incomparáveis, como fizeram no Leste Europeu, na China, no Vietnã,
na Coréia do Norte, no Camboja e em Cuba, ainda se sintam com autoridade
bastante para verberar os pecados das democracias capitalistas, como se estas
não tivessem provado mil e uma vezes sua capacidade de corrigir-se a si mesmas
e se encontrassem urgentemente necessitadas dos conselhos morais de
revolucionários, narcoguerrilheiros e genocidas.
Não é necessário dizer que essa autodivinização, que
preserva da consciência dos próprios pecados o apóstolo do “mundo melhor”,
corresponde literalmente à total rendição da alma ao pior dos pecados: a
soberba demoníaca. “Todos os pecados se apegam ao mal, para que se realize”,
dizia Sto Agostinho: “Só a soberba se apega ao bem, para que pereça.”
A destruição do bem por parasitagem interna é mais eficiente
do que a simples acumulação de males. Reduzido a pretexto legitimador da
violência, da crueldade e da desordem revolucionárias, o bem acaba por se
identificar com elas, e qualquer tentativa de lhes opor resistência é que se
torna um pecado nefando. Quando o encargo de julgar moralmente a sociedade
recai precisamente sobre aqueles indivíduos que se tornaram os mais incapazes
de julgar-se a si mesmos, o resultado é esse: uma moral invertida, uma
antimoral de perversos e celerados afirma-se com a intransigência de um
neomoralismo mais rígido e intolerante do que todos os moralismos conhecidos.
Hoje em dia, em círculos letrados, já ninguém pode falar contra o consumo de
drogas, contra a libertinagem, contra o aborto em massa ou contra certas formas
de banditismo sem ver-se cercado de olhares de reprovação, como se tivesse dito
algo de indecente.
Confundindo, rebaixando e prostituindo os padrões de
julgamento, a simples presença, na vida intelectual e política, de um número
suficiente de homens imbuídos dessa religiosidade às avessas já é um poderoso
fator de deterioração moral da sociedade, inibindo a ação repressiva e
infundindo nos delinqüentes uma autoconfiança ilimitada.
No fim, nada mais haverá a alegar contra um assalto, um
homicídio, um estupro, exceto que, eventualmente, lhe faltou o devido “nihil
obstat” ideológico. Tal é, por exemplo, o raciocínio do deputado Walter
Pinheiro, líder do PT na Câmara Federal, ao pronunciar-se contra os seqüestradores
de Washington Olivetto: “Eles seqüestram, torturam por dinheiro, não têm ética.
Não são guerrilheiros, são bandidos.” Que é que isso significa, senão que
seqüestrar, torturar e matar em nome das crenças do deputado, à maneira de um
Fidel Castro ou de um Pol-Pot, faria, dos delinqüentes, lindos exemplos de
moral superior? E notem não há aí a simples diferença do “crime comum” para o
“crime político”. Pinochet também não matou por dinheiro. Matou por política,
mas isto não basta para beatificá-lo aos olhos do deputado. Não é qualquer
motivo político que serve. A esquerda tem, hoje como nos tempos de Stálin, não
apenas o monopólio da licença para delinqüir, mas o monopólio do crime bondoso.
Seqüestros, torturas, homicídios não são maus nem bons em si mesmos. São
relativos. O único crime, o único pecado, o único mal absoluto, é estar contra
o partido de S. Excia. Daí que sua correligionária, Heloísa Helena, se mostre
menos indignada com a maré montante da criminalidade do que com a simples
tentativa de investigar as ligações, mais que prováveis, entre seqüestros,
narcotráfico e revolução continental. Crimes podem ser condenáveis ou
louváveis, conforme a gradação de pureza de seus pretextos ideológicos. A
investigação é má em absoluto, porque é coisa “da direita”.
Olavo de Carvalho é filósofo. Este texto foi publicado
originalmente em O Globo, no dia 9 de fevereiro de 2002.
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