
A continuidade essencial da visão gnóstica do mundo nas
ideologias messiânicas modernas — nazismo, fascismo, socialismo — é um dado
histórico bem estabelecido pelos estudos de Cohn, Voegelin, Billington e tantos
outros pioneiros que desbravaram o assunto desde a década de 30. É verdade que
esses estudos continuam quase desconhecidos do nosso “establishment”
universitário. Mas, quer o saiba ou não a elite intelectual de Catolé do Rocha,
o fato é este: uma linha de sucessão perfeitamente nítida vem das heresias
medievais aos revolucionários de 1789, a Marx, a Sorel, a Gramsci e a todos os
seus sucessores na missão auto-atribuída de “transformar o mundo”.
Ao longo dessa linha, a crença na própria impecância
essencial, derivada da certeza de união íntima a Deus, ao sentido da História,
aos ideais eternos de justiça e liberdade ou a qualquer outra autoridade
legitimadora transcendente — pois esta varia conforme a moda cultural, sem
mudar de função — é que lhes infunde, geração após geração, um sentimento
perfeitamente sincero de honradez e santidade no instante mesmo em que
mergulham no mais fundo da abominação e do crime.
Não se trata de vulgar hipocrisia, mas de uma efetiva
ruptura da consciência, que, elevando a alturas inatingivelmente divinas as
virtudes da sociedade futura que o indivíduo acredita representar desde já, o
torna “ipso facto” incapaz de julgar suas próprias ações à luz da moralidade
comum, ao mesmo tempo que o investe, a seus próprios olhos, da máxima
autoridade moral para condenar os pecados do mundo. Eis como as mais baixas
condutas podem coincidir com as mais altas alegações de nobreza e santidade.
Foi com perfeita sensação de idoneidade que, após o fim da
II Guerra, os marxistas continuaram discursando retroativamente contra a
tirania e o genocídio nazistas, ao mesmo tempo que superavam rapidamente esses
seus antigos concorrentes na prática da tirania e do genocídio.
Nas democracias, qualquer político vulgar flagrado em delito
menor perde a pose, entra em crise depressiva e faz deplorável figura ante o
olhar da multidão. É que não se imunizou previamente, por imersão nas águas
lustrais da autobeatificação ideológica, contra o sentimento de culpa. Acossado
pelas denúncias, ouve brotar desde dentro o clamor da sua própria consciência
moral que, longamente reprimida, retorna das sombras para condená-lo,
justamente no momento em que ele mais precisaria reunir suas forças para
defender-se dos adversários externos. Então ele vacila e cai. Foi assim que
caiu Nixon. Foi assim que caiu Collor.
Já o revolucionário, o militante, o malfeitor ideológico,
quando exposto às provas inumeráveis de seus crimes sangrentos e inumanos, se
sente revigorado, fortalecido, enaltecido. Pois esses crimes, para ele, não são
crimes: são sinais da bondade futura. Só assim se explica que homens que, por
onde quer que tenham subido ao poder, só espalharam morte, miséria e
sofrimentos incomparáveis, como fizeram no Leste Europeu, na China, no Vietnã,
na Coréia do Norte, no Camboja e em Cuba, ainda se sintam com autoridade
bastante para verberar os pecados das democracias capitalistas, como se estas
não tivessem provado mil e uma vezes sua capacidade de corrigir-se a si mesmas
e se encontrassem urgentemente necessitadas dos conselhos morais de
revolucionários, narcoguerrilheiros e genocidas.
Não é necessário dizer que essa autodivinização, que
preserva da consciência dos próprios pecados o apóstolo do “mundo melhor”,
corresponde literalmente à total rendição da alma ao pior dos pecados: a
soberba demoníaca. “Todos os pecados se apegam ao mal, para que se realize”,
dizia Sto Agostinho: “Só a soberba se apega ao bem, para que pereça.”
A destruição do bem por parasitagem interna é mais eficiente
do que a simples acumulação de males. Reduzido a pretexto legitimador da
violência, da crueldade e da desordem revolucionárias, o bem acaba por se
identificar com elas, e qualquer tentativa de lhes opor resistência é que se
torna um pecado nefando. Quando o encargo de julgar moralmente a sociedade
recai precisamente sobre aqueles indivíduos que se tornaram os mais incapazes
de julgar-se a si mesmos, o resultado é esse: uma moral invertida, uma
antimoral de perversos e celerados afirma-se com a intransigência de um
neomoralismo mais rígido e intolerante do que todos os moralismos conhecidos.
Hoje em dia, em círculos letrados, já ninguém pode falar contra o consumo de
drogas, contra a libertinagem, contra o aborto em massa ou contra certas formas
de banditismo sem ver-se cercado de olhares de reprovação, como se tivesse dito
algo de indecente.
Confundindo, rebaixando e prostituindo os padrões de
julgamento, a simples presença, na vida intelectual e política, de um número
suficiente de homens imbuídos dessa religiosidade às avessas já é um poderoso
fator de deterioração moral da sociedade, inibindo a ação repressiva e
infundindo nos delinqüentes uma autoconfiança ilimitada.
No fim, nada mais haverá a alegar contra um assalto, um
homicídio, um estupro, exceto que, eventualmente, lhe faltou o devido “nihil
obstat” ideológico. Tal é, por exemplo, o raciocínio do deputado Walter
Pinheiro, líder do PT na Câmara Federal, ao pronunciar-se contra os seqüestradores
de Washington Olivetto: “Eles seqüestram, torturam por dinheiro, não têm ética.
Não são guerrilheiros, são bandidos.” Que é que isso significa, senão que
seqüestrar, torturar e matar em nome das crenças do deputado, à maneira de um
Fidel Castro ou de um Pol-Pot, faria, dos delinqüentes, lindos exemplos de
moral superior? E notem não há aí a simples diferença do “crime comum” para o
“crime político”. Pinochet também não matou por dinheiro. Matou por política,
mas isto não basta para beatificá-lo aos olhos do deputado. Não é qualquer
motivo político que serve. A esquerda tem, hoje como nos tempos de Stálin, não
apenas o monopólio da licença para delinqüir, mas o monopólio do crime bondoso.
Seqüestros, torturas, homicídios não são maus nem bons em si mesmos. São
relativos. O único crime, o único pecado, o único mal absoluto, é estar contra
o partido de S. Excia. Daí que sua correligionária, Heloísa Helena, se mostre
menos indignada com a maré montante da criminalidade do que com a simples
tentativa de investigar as ligações, mais que prováveis, entre seqüestros,
narcotráfico e revolução continental. Crimes podem ser condenáveis ou
louváveis, conforme a gradação de pureza de seus pretextos ideológicos. A
investigação é má em absoluto, porque é coisa “da direita”.
Olavo de Carvalho é filósofo. Este texto foi publicado
originalmente em O Globo, no dia 9 de fevereiro de 2002.
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