
O livro sagrado traz, por exemplo, a história de José do
Egito. Ele interpretou o sonho do faraó sobre as sete vacas gordas e as sete
vacas magras como uma profecia de que o Egito teria sete anos de fartura
seguidos de sete anos de escassez. A partir disso, o faraó administrou as
colheitas para estocar parte da produção nos anos de fartura para que a
população não passasse fome nos anos ruins.
O Brasil vive uma história de José do Egito ao contrário.
Gasta nos anos de fartura e fica na penúria durante as crises econômicas. Um
exemplo disso é a relação entre o gasto público e o PIB. Dados do Tesouro
Nacional mostram que o percentual de despesas em relação ao PIB não para de crescer,
ao passo que o crescimento do PIB tem caído desde, pelo menos 2010.
Em 2013, o Brasil ainda fechou o ano em superávit – quando
as receitas são maiores que as despesas. O PIB naquele ano cresceu 10,7% em
relação ao ano anterior e o governo gastou 17,3% do PIB com despesas primárias
– 13% somente com despesas obrigatórias, como pagamento de pessoal e
previdência.
Em 2014, o Brasil fechou o ano no negativo pela primeira vez
desde a década de 1990. O PIB cresceu apenas 8,3% em relação a 2013, mas o
governo gastou mais: 18,1% do PIB em despesas primárias – 13,4% em despesas
obrigatórias.
Em 2015, mais uma vez o PIB cresceu menos em relação ao ano
anterior: 3,7%. O governo gastou 19,4% do PIB em despesas primárias – 15,2% em
despesas obrigatórias.
Em 2016 e 2017, o PIB voltou a apresentar um crescimento,
ainda tímido, na casa dos 4% em cada ano, mas as despesas primárias – e as
obrigatórias – continuaram apresentando um crescimento maior do que em
anos interiores.
Despesas estão vinculadas a gastos difíceis de cortar
Parece óbvio que para resolver o problema do desequilíbrio
das contas públicas a solução é cortar despesas. O problema é que as despesas,
que sobem mais que o PIB, estão vinculadas a gastos difíceis de cortar, como
pagamento do funcionalismo e de previdência.
Só para se ter uma ideia, em 2017, o gasto com previdência
correspondeu a R$ R$ 557,2 bilhões – 54,2% das despesas obrigatórias e 40,2% de
tudo que o governo arrecadou no ano.
No mesmo ano, o gasto com pagamento de servidores públicos
correspondeu a outros R$ 284 bilhões – 27,6% das despesas obrigatórias e
20,5% de tudo que foi arrecadado.
Só com essas duas despesas, o Brasil gastou mais de 60% do
que arrecadou.
As causas para o problema
Para o professor de economia da Universidade Positivo (UP),
Walcir Soares Júnior, uma das causas para esse aumento de despesas em tempos de
crise é o fato de a economia ser cíclica e o governo não conseguir suavizar os
ciclos.
“Todo mundo sabe que você sempre vai ter um pico, e esse
pico vai subir e vai descer, é um ciclo. A gente só não sabe quanto tempo vai
durar esse ciclo. A questão é o desalinhamento. A política pública deveria
servir para suavizar esses ciclos”, diz o economista.
O professor da Faculdade de Economia e Administração da USP
de Ribeirão Preto, Luciano Nakabashi, destaca que há gastos que são vinculados
ao PIB e não podem ser cortados quando a economia não vai bem. “Quando o PIB
aumenta, tem muitos gastos que são vinculados. Então, quando aumenta a receita,
esses gastos aumentam automaticamente. E quando o PIB cai, você não pode
reduzir o gastos”, explica.
Há, ainda, outro problema, apontado pelo professor de
economia da PUC-PR, Masimo Della Justina, que é justamente o que José do Egito
ensinou ao faraó.
“Se recomenda sempre que no período de prosperidade o
governante faça provisão, uma caixinha. Então existe o que a gente chama de
superávit primário, que é um dos mecanismos que o governo utiliza para essa
provisão”, explica.
“No caso do Brasil, tanto no período em que a economia
estava crescendo, tanto quanto depois que começou a entrar em recessão, o
governo começou a gastar esse superávit e não fez essa provisão. Nesse aspecto
as contas públicas só pioram”, completa o professor da PUC.
Soares destaca, porém, que o simples corte de gastos não
serve para resolver o problema do desequilíbrio das contas. “Ao mesmo tempo em
que não é bom gastar demais, também não é bom gastar de menos. Por um lado,
você tem inflação quando você gasta muito e não tem produtos suficientes na
economia, e por outro você tem deflação. Nós temos uma visão de que o correto seria
ter sempre [dinheiro] sobrando e na verdade, não. O correto é ter um equilíbrio
de nem superávit nem déficit”, defende o economista da UP.
Justina ainda destaca um componente político que explica o
desajuste das contas públicas. Em tempos de crise, segundo o economista, o
governo deveria cortar na própria carne, reduzindo o número de secretarias,
departamentos e ministérios, mas isso é muito difícil por causa do
presidencialismo de coalizão – quando o governo troca cargos em ministérios por
apoio no Congresso, por exemplo.
“Os deputados e senadores colocam pressão sobre o presidente
para ele não tomar atitudes que vão representar corte de gastos. Nosso modelo
político de presidencialismo de coalizão se torna muito caro nesse sentido. Ele
tira do presidente a liberdade de agir de forma mais racional durante o ano”,
explica Jusina.
Sem poder cortar despesas obrigatórias, investimentos são
afetados
Quando o governo federal tem dívidas que não pode deixar de
honrar, como pagamento de pessoal e aposentadoria, acaba cortando gastos onde
dá. Enquanto as despesas obrigatórias do governo continuaram crescendo mesmo a
partir de 2014, quando o governo começou a fechar no vermelho, as despesas
discricionárias – aquelas que não são obrigatórias – passaram a cair.
O problema é que, entre as despesas discricionárias estão os
gastos com investimentos, inclusive em infraestrutura.
Em 2014, o governo gastou 4,6% do PIB com despesas
discricionárias. Somente 1,34% do PIB foi aplicado em investimentos. Esse valor
caiu em 2015 para 0,93% do PIB – que já cresceu menos em relação ao ano
anterior. Em 2016 houve um pequeno aumento nos gastos com investimentos – 1% do
PIB –, mas o valor voltou a cair em 2017, para 0,7%.
“Se você pegar a carga tributária na época Fernando
Henrique, era em torno de 25%, 26%, hoje é 34%, 35%. Fora o que o governo gasta
a mais do que arrecada, que é bem mais que esses 34%, 35%. Chega próximo dos
40%”, explica Nakabashi. “Mesmo assim, o investimento é menor do que era
relativamente ao PIB por causa dessa dinâmica de aumento de gastos”, completa o
economista.
Além de afetar os investimentos, o desequilíbrio pode levar
ao não pagamento das dívidas por parte do governo federal. “A gente gasta em
torno de 13% do PIB com Previdência. Pode chegar um momento em que o governo
não tem como pagar. Aí não paga. A gente vê isso em alguns estados
acontecendo”, alerta Nakabashi.
Se nada for feito, segundo o economista, a situação pode
levar a uma paralisia do governo. “A gente está vendo [paralisia]. Você pega o
Rio de Janeiro, que parou de pagar funcionários”, exemplifica. “A gente viu a
questão do corte de gastos com emissão de passaporte. São coisas pequenas, mas
que se a gente continuar nessa trajetória vai começar a afetar cada vez mais
setores da economia”, completa Nakabashi. “Enquanto não resolver isso a
perspectiva é de piora nas contas públicas”, sentencia.
O que o próximo presidente pode fazer para fugir da maldição
do Faraó
Os economistas apontam para uma série de medidas que podem
ajudar o Brasil a fazer como o faraó do Egito e ajustar o desequilíbrio
econômico.
“A meu ver, uma coisa que é quase unânime, é a necessidade
de reformas. Fala-se da reforma da Previdência, da reforma agrária, da reforma
política. A reforma política tiraria esse componente político da questão
econômica. A questão econômica não pode ter um componente político. O Banco
Central deveria ser independente para tomar suas decisões com relação à
proteção da estabilidade da moeda e com relação ao que o país precisa e não com
o que o governo está pedindo”, diz Soares. “Acho que o primeiro desafio do
próximo governo seria fazer essa desarticulação política dessas questões que
são econômicas”, completa o economista.
Nakabashi também destaca a importância de uma reforma da
Previdência urgente para ajudar a reequilibrar as contas públicas. “Alguns
benefícios já estão sendo cortados. Hoje quem entra em cargo público federal
tem um teto do INSS. Mas o principal hoje é aumentar bastante a idade”, aponta.
Outra reforma fundamental, segundo o economista da USP, é a
desvinculação de gastos ao aumento do PIB. “A questão de desvincular os gastos
das receitas, para que não aconteça esse aumento automático quando você aumenta
o PIB. Porque quando cai, não só você não pode reduzir, mas você tem de
aumentar outros gastos, como seguro desemprego. Tem outros gastos que tendem a
aumentar em tempo de crise”, explica.
Soares aponta outra saída, que não passa necessariamente por
cortes. “O corte de gastos, em um primeiro momento, é a primeira resposta que
temos quando estamos em um cenário de déficit. Mas ao invés de focar no corte
de gastos, deveríamos focar o no aumento de receitas, no estímulo das empresas
a exportar, assim você tem um aumento no PIB, um aumento no crescimento do país
e isso vai tornar o cenário mais propício para as pessoas que produzem”,
propõe.
Justina também propõe que o governo corte gastos na própria
carne com mais eficiência para superar o desequilíbrio das contas. “Tem que
diminuir o tamanho do governo federal, teria que rever postos e cargos
comissionados, teria que rever ministérios, teria que fazer um enxugamento
grande na máquina federal”, propõe o economista. “Não é só fazer rearranjo, é
ver como eficazmente o próximo presidente pode reduzir drasticamente os
compromissos financeiros enxugando a máquina federal”, pondera.
Outra medida importante é não esquecer a lição que a Bíblia
tem a ensinar. “O governante teria que fazer aquilo que a gente chama de
políticas anticíclicas. Quer dizer, em momentos de crescimento o governante
gasta menos e faz provisão, de maneira que quando a economia cresce mais
lentamente ou entra em um processo de recessão, o governo tenha provisão para
manter aqueles gastos que são constitucionais, obrigatórios”, aponta Justina.
Trajetória de crescimento já pode mudar a economia do país
Para Nakabashi, caso as medidas consideradas cruciais para o
reequilíbrio das contas públicas sejam tomadas, mesmo que a solução efetiva
venha apenas a médio e longo prazo, o fato de o país estar no rumo certo já
pode trazer benefícios para a economia.
“A questão das expectativas acaba sendo muito importante.
Quando você mostra que a trajetória é boa, as pessoas começam a investir hoje.
Quando você tem o mesmo nível de dívida em relação ao PIB, um déficit alto, mas
uma trajetória de melhora, isso afeta as expectativas de melhora futura e já
afeta investimentos hoje”, sugere o economista.
Para Justina, investimentos do governo federal podem ser um
bom indicativo para atrair novos investidores para o país. “A gente investe
muito pouco”, diz o economista da PUC-PR. “Na verdade, a gente investe só a
sobrinha que tem. Menos de 6% do orçamento federal vai para investimento, vai
para porto, ferrovia, rodovia. Na verdade, teria que ser o contrário, porque
existe um efeito multiplicador dos gastos governamentais. Quando você faz
investimentos em infraestrutura pública você acaba criando um ambiente
macroeconômico para também o setor privado fazer seu investimento e gerar
produção e emprego. É mais inteligente você aumentar o percentual do orçamento
que vai para o investimento público”, diz Justina.
“O que nós precisamos é tornar esse momento atual propício
para o investimento, tornar o investidor mais confiante de que ele pode
investir e vai ter demanda. Com isso ele emprega mais gente, o que gera mais
salário, que gera mais despesas, que gera um círculo virtuoso de crescimento no
país. O governo tem um papel preponderante nisso, baixando taxas de juros,
estimulando o trabalhador, estimulando as empresas a investirem no país”,
corrobora Soares.
Fonte: Gazeta do Povo
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