I
Barba feita, vestes e um
bom perfume, asseava-se como se estivesse ligado no automático. Sua mente pouco
se concentrava no que fazia; os pensamentos criavam imagens de como seria
aquela noite. A primeira festa que participariam juntos desde que ela acabara
seu antigo namoro. Eram tão amigos, confidentes, ele ouvia-a contar suas
aflições, enxugava suas lágrimas, suas decepções amorosas e seus conflitos
familiares, de igual modo, embora comedido, ele confiava-lhe seus anseios,
sonhos e medos. Desejava-a em segredo, quando a abraçava pensava como seria se
namorassem, planejava o futuro, filhos, cursos, viagens. Chorava junto cada
lágrima que ela sofria por suas brigas com o namorado, sabia que ele a iludia,
mas não lhe contava nada na expectativa de poupar-lhe o sofrimento. Apenas
torcia para que tudo findasse. Era o último baile do ano, combinaram que a
apanharia, outro amigo os levaria. Estava tenso, planejava as frases, o modo
como a convidaria para dançar, seguraria sua mão, acariciaria seu rosto,
aproximaria seus lábios dos dela. Esses pensamentos faziam seu coração ritmar
ligeiro. Apanhou-a em sua residência, seguiam felizes. O motor do carro roncava
com as estripulias da juventude. Dançaram embalados pelo som romântico, tomou
coragem e disse-lhe o quanto ela era linda. Suas mãos suavam, declarava-se
pouco a pouco com voz embargada, aproveitando-se do alto som que limitava a
compreensão das frases. O ritmo ficou lento, encostou seu rosto no dela,
sussurrava elogios em seus ouvidos e aproximava sua boca da dela, quando tudo
indicava o primeiro beijo foram interrompidos. Era aquele inspirador das
lágrimas que a inundavam nas noites de desalento e confissão.
- Podemos conversar?
Ela olhou fundo nos olhos dele
clamando por forças para resistir e dizer não. Os olhos dele mirando-a
profundamente angustiado não conseguiram ancorá-la, ela fora com aquele que
tornava seus dias amargos. Ele, apenas a fitava de longe. Em sua mente orações
e intercessões para que ela voltasse e pudessem regressar ao momento do qual
foram interrompidos. Via-a gesticular negativamente – agora ela o negará para
sempre – pensava. Via-o insistir, temia que mais uma vez ela cedesse aos
discursos falaciosos, às juras profanas de amor medido, sem entrega. As horas
passavam, o baile seguia sem contentamento. Ela retornava secando as lágrimas
pedindo para tornar a casa. Atendeu seu pedido. No portão enquanto se despediam
abraçou-a forte, tocou seu rosto, e quando seus lábios estavam prestes a tocar
os dela foi abruptamente assustado pela buzina do carro.
- Vamos logo – era seu amigo – o
baile ainda continua.
II
Manhã seguinte procurou-a, as
mensagens eram-lhe enviadas sem retorno, não havia sequer confirmação de
leitura. Racionalmente continha os sentimentos, retinha o desejo de
telefonar-lhe e ir a sua casa. Embriagando-se em corpos despidos de amor e
cobertos pelo efêmero prazer via os dias passarem e ampliar a distância que os
apartava. Culpava-se por isso, não deveria ter sido tão ousado na noite daquela
festa, assustada e confusa ela se quedou. Decidiu que daria o tempo que ela
necessitasse para que se descobrisse. Permitiu-se viver aventuras, até cria ter
se apaixonado. Pouca informação sabia sobre ela até que caminhando pelo centro
da cidade seus olhos, como se estivesse numa busca implacável, avistou-a. Bela,
sempre bela. Caminhava leve como a brisa das tardes ensolaradas da primavera,
revestida de charme e sensualidade num misto incomum com a inocência e a
sapiência. Seu corpo singelo e esguio, de contornos afinados era-lhe a tradução
da sedução e entrega. Sentia-se um menino desengonçado, ajustava o modo de
andar buscando dar-lhe um ar de imponência. Antes de trocarem quaisquer
palavras cruzaram os olhos e sorrisos, os primeiros foram mais altivos que
qualquer sintagma, o segundo convidativo ao abraço. Longo foi o abraço seguido
por palavras descompassadas que sobrepunham um assunto a outro, tudo para que
pudesse ficar junto a ela, mesmo que por um efêmero período. Ela não possuía
olhos de cigana oblíqua e dissimulada, mas herdara de Capitu o olhar de ressaca
que o arrastava para seu mundo e embriagava-o de sonhos. Não desviava o olhar
como o fazia Bentinho, queria mesmo ser conduzido àquele mar de aventuras que
gostaria de protagonizar. Restou-lhe um convite, tão simples aos espectadores,
mas de valor ímpar.
- Passa lá em casa mais tarde,
precisamos conversar.
Acenou confirmando antes de
esboçar o sim. Possuía motivos exorbitantes para mergulhar-se em felicidade.
Sim, sim, claro que sim – disse titubeando, não por dúvida, mas por ansiedade.
Despediram-se. Ele observava-a seguir, seu andar flutuante, seus cabelos negros
ao vento e toda a magia que a envolvia.
III
O negro da noite unido à luz do
luar montavam um belo cenário, quase árcade, sereno, luminoso, perfeito a
concretização de um amor. Carecia apenas da presença de uma ninfa, uma deusa e
tornar-se-ia perfeito, mas logo ela comporia aquela cena. Costumavam conversar
no jardim, sentindo o cheiro das indecisões, do concreto da cidade, das
baforadas dos carros velozes e poluentes que transitavam. Do interfone apenas a
voz, já descerei. Sentaram-se na grama e miraram o céu numa tentativa de burlar
a imposição urbana e aproximar-se da natureza. Ela lhe era parte integrante do
belo e natural dentre o turbilhão duro e tomado pela fuligem. Bela, mais bela
que a própria lua envolta pelo reflexo de luz que a coloria, seus olhos negros como
a noite e seu cheiro primaveril, ela encantava de odor a dura paisagem que os
envolvia. És a personificação da beleza - repetia em pensamento enquanto
buscava coragem para confessá-la. O sorriso abarrotado de vermelho fogo. Era o
fogo que aquecia seu apaixonado coração. Decidiu calar-se, esperá-la iniciar a
conversa, afinal, estava ali a convite, isso poderia ter algum significado.
Estava com saudades, tenho muito a te contar – dizia-o atormentando a ânsia.
Fizeram uma seleção de músicas, não apenas ouviam, mas discutiam pela escolha
musical enquanto cantavam em alto tom até escutarem um dos vizinhos do prédio
gritar pedindo silêncio. Sorriram muito, um acenando para o outro baixar o tom
da felicidade. Eram-lhe momentos incríveis. E num silêncio e olhos nos olhos
confessou que reatara o namoro. Estarrecido, tentou disfarçar. Que bom – disse
enquanto esvaía-se da esperança. Ele negou que havia me traído, afirmou que me
amava e que desta vez seria diferente – prosseguiu ela parecendo desculpar-se.
Tudo bem – respondeu-lhe. Tudo bem? Disse-lhe entonando pergunta. Sim – ele
concluiu. Vamos, conte-me, soube que estava com uma garota – indagou-o. Desviou
o olhar e hesitou responder. Nada sério – contestou evocando um novo assunto.
Tinham entre o maior passatempo discutirem por temas vãs, em comum tinham a
música e literatura, no mais discutiam. Religião, política e economia, sempre
discutiam, no futebol não, nisso também concordavam. O passar das horas cobriu
a lua de acinzentadas nuvens, pensou que ao menos lhe valera a companhia, ao
menos como antes, como fortes amigos.
IV
Estava certo de que as
declarações que ele a fizera eram infidas, mas não lhe valeria dizer, ela
desabaria numa inefável consternação. Optava por prosseguir acalentando-a
quando necessário. Mirar sua pele rosada sorrindo o satisfazia, acostumou-se a
sua companhia e nisso encontrava contentamento; fugia em versos que
compartilhavam, até mesmo duetos compuseram. Ela sentia prazer nas crônicas,
ele nos poemas, mas produzira-lhe cartas, cartas sem respostas, apenas um
sorriso, isso já o bastava. Ela encantada com as efêmeras aventuras não
percebia o súdito pré-disposto a conduzi-la ao mais fascinante mundo do
completo prazer. Talvez jamais percebesse e isso a deixaria fadada às ilusões
escapistas de amores sem entrega, um sempre e tanto pranto e diante de outro
encanto se encantaria seu pensamento. Em cada vão momento ele amava-a,
densamente amava-a, demasiadamente amava-a. Suspirava e escrevia
sentimentalidades, recitava Camões e filosofias e botequins. O humor completava
sua personalidade com abundantes sacarmos e ironias e ela demonstrava simpatia
por isso. O sorriso doce e perfumado exalava inspiração poética para os mais
belos cenários românticos, um viva ao saudoso José de Alencar que descrevia uma
virgem de lábios de mel, mas os dela – dizia ele – superior o era ao de Iracema
embora jamais a tenha beijado, e sua delicada força para além de Aurélia. Cega,
engendrava-se num marasmo pausado por pequenos momentos de êxtase. Passava
grande parte do tempo contestando as condutas que lhes eram impostas como se
tivesse um pai e não um namorado. Confessava-o isso, mas ele não sabia nesses
momentos como articular as palavras sem confessar o amor que detinha e pedi-la
para findar aquilo, a aflição seria duplamente rematada, mas faltava-lhe o
destemor atribuído aos heróis da segunda metade do século XVIII. Embora
exacerbado em dor submetia-se à racionalidade dos neoclássicos e logo fugia das
incertezas e mergulhava em águas límpidas e serenas, era seu fugere dor, ou
algo semelhante, por certo se entregou ao carpe diem. Largou o lápis, seus
personagens e pesquisas por rimas raras e se dedicou a mutar o sentir. Conheceu
novas pessoas, ampliou os horizontes e dia a dia guardava-a, num lugar puro,
mas guardava-a.
V
Deleitou-se em aventuras,
permitiu-se ledices, esforçou-se para esquecê-la; era vão, mas não negou que se
satisfez em bocas e peles múltiplas. Até mesmo cria ter desenvolvido paixão por
uma das morenas com quem se relacionou, essa era independente e leve, gostava
disso nas pessoas. Ela não, lhe parecia tão delicada e cativa e isso ora o
estimulava a lhe ofertar seus cuidados, ora o irritava por vê-la buscar
cuidados em braços tão frios e infiéis. Por que ele insistia? – perguntava-se,
mas o que o intrigava era por que ela insistia. Estavam estudando, tinham
grande afinidade no que sanavam facilmente as dúvidas, estudavam juntos desde a
infância, conheciam-se bem, qualidades, defeitos e limitações. Ele estava
atento às mensagens que recebia pelas redes sociais, ela parecia irritada,
imaginou que já tivesse em outra discussão com o namorado, mas ela não contou
nada, estava fria e fixando-o no conteúdo de estudo. Que há? Algum problema?
Conheço bem esse olhar incomodado – Disse a ela. Nada! – friamente respondeu.
Por que você não me disse que estava fazendo uma amiga? Não me apresentou – ela
continuou. Você é minha melhor amiga, não entendo a pergunta, e se fala sobre
essa menina – continuou mostrando uma foto de perfil numa rede social- é apenas
uma garota, estamos nos conhecendo. Que achas dela? – ironicamente ele
prosseguia. Ela roía as unhas, lançava os cabelos de um lado para outro e
buscava uma maneira confortável de sentar na cadeira fria do escritório do pai
dele. Ele evitava as expectativas, mas algo ocorria e não compreendia bem,
seria aquela reação um toque externalizador de ciúmes? Ela estaria com ciúmes
de mim? Sonho meu, sonho meu – pensava ele enquanto sorria-lhe com satisfação.
Seria verdade ou aparência? Iniciou uma descrição detalhada de sua nova amiga e
ao fazê-lo percebia o incômodo crescente na feição e atitudes dela, parecia-lhe
realmente entediada com suas palavras e num abrupto ato fechou os livros,
desligou o computador disse possuir um compromisso e saiu sem as despedidas comuns.
VI
Sua mais nova e bela amiga
entupira sua caixa de mensagens com lembretes e pequenas declarações.
Satisfazia-se com isso, pensava que talvez fosse possível esquecer a antiga
inspiradora de seus poemas, afinal ela estava cativa e entregue àquele
relacionamento que embora a embriagasse de temores fazia-a provar um sabor
caloroso e misto similar ao agridoce. Debruçou-se sobre papel e caneta numa
tentativa de ordenar palavras em sentido e sentimento, ainda era vão. Pequenos
lapsos de memoria o perseguia, no que lutava tolhendo as asas desses sonhos
pretéritos, mas tão recorrentemente os sonhos o vencia. Já não chorava, as
lágrimas se converteram em passeios e cinemas em nova companhia. Passara-se
tempo desde o último encontro e agora já estavam desfrutando as férias, não a
viu sequer nas avaliações finais, questionou até aos professores, descobriu
apenas que fizera as avaliações em período especial. Arriscou e foi até a sua
casa, mas ninguém atendia. As mensagens e ligações eram sem retorno, não
comentava com ninguém, mas seu coração preenchido pelo medo e arrependimento
doía.
“Guardeias, temi
pronunciá-las
Ainda que eu as
dissesse, meras palavras!
Quão doces e tristes
palavras minhas
Ineficazmente
narraram-te
A imensidão que sinto
por ti, te amo!”
Assim,
arriscava alguns decassílabos, mas logo paralisava no tempo, distraía-se com o
vibrar do celular alertando uma nova mensagem convidativa a novos passeios e
preenchimento de seus lábios, contudo os beijos que ansiava só poderiam ser
realizados noutra boca. Outra vez insistia com os versos:
“Amo-te não num
instante pequeno
Não num presente,
somente, não sente?
Docemente entrega-te,
sente-me!
Ouça, meus olhos hão
de revelar
Se palpitar o vosso
coração
Mira-me
profundamente, talvez
Esse sentir seja
mútuo, percebes?
Sinfonia cardíaca
sintamos
Dê-me a tua mão e
vamos festejar!”
Ao concluir tratou logo de
lançar ao lixo, detestou-o, e mais, queria esquecê-la. Aceitou o convite e saiu
para mais uma sessão de cinema. Estava na fila para a compra do ingresso, sua
companhia selecionando as guloseimas. Enquanto observava as pessoas ao longe a
avistou, linda e leve; caminhava com um imenso sorriso estampado ordenando
ainda mais sua pálida face. Fitou seus passos e os comparou aos de uma
bailarina que alcança todo o equilíbrio necessário para realizar o mais
complexo dos passos; ela aproximava-se e com gestos dizia-lhe que tudo estava
bem. Seu coração palpitava, por ora até esquecera sua colega, apenas
encontrou-a em seu olhar, ela estava diferente, não sabia o que era e não teve
tempo para conjecturar; ela chegou e antes mesmo que ele pronunciasse “olá”,
beijou-o ardentemente. Ele não compreendia, e nem queria, apenas correspondeu.
Foram embalados pela sinfonia cardíaca.
Amanda Rocha é professora. Escreve em ConTexto às quintas-feiras.
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