Dispensa-se o
título de doutor ou pesquisador para ter ciência da necessidade que o homem
possui de expressar sensações, sentimentos, ideias para outro ser ou para uma
sociedade. A forma como o homem interage com outros homens e com o mundo é
denominada linguagem, a qual pode ser compreendida como um sistema de sinais utilizados para efeito de comunicação, que pode
dar-se através da linguagem verbal ou não verbal.
O certo é que a
espécie humana progrediu dos hieróglifos das Cuevas de Altamira para uma
linguagem cada vez mais facilitadora e complexa, como a dos Ipod, por
exemplo, que oferecem milhões de possibilidades comunicativas que seus usuários
sequer conseguem usufruir em sua totalidade. A atual Revolução Industrial,
iniciada na passagem do século XX para o XXI, ou a Revolução Digital, tem transformado
a maneira com a qual os indivíduos comunicam-se. Segue um trecho de um conto
escrito por Amanda Sinara, uma de minhas ex-alunas, que descreve com humor e
leveza alguns impactos dessa revolução comunicativa no cotidiano dessa nova
geração:
COMPLICADA
I
Eu sabia que devia ter ficado
em casa. Sabia que devia ter voltado para cama assim que sair para ir à escola,
era um dia chuvoso. Devia ter voltado pra baixo dos meus lençóis. Ao pegar um
atalho, um carinha de moto passou e me molhou toda. Eu devia ter voltado, mas,
respirei fundo e o insultei por alguns minutos com todas as palavras feias que
conhecia. Ignorando as pessoas que passavam por mim com olhares
reprovadores. Não ficou nada melhor quando cheguei dez minutos atrasada na
escola e o diretor me fuzilou com os olhos e depois disse:
-
Além de chegar atrasada, você ainda chega com a roupa toda suja? Você devia se
vestir um pouco melhor, Carla.
- Eu sei, diretor. Mas acontece
que uma moto passou por...
- Ah! Chega de desculpas. Já
estou cheio delas; acha mesmo que acredito nas suas histórias?
- Me desculpe! Vou
imediatamente para minha sala, ok?
E sem esperar por mais um dos
seus ataques, andei em direção a minha sala, olhando sua reação pelo canto dos
olhos. O diretor ficou me encarando por alguns minutos, mas depois saiu
resmungando. Era aula de informática e precisava fazer uns trabalhos, mas
meu computador travou e depois apagou completamente.
- Preciso desses trabalhos até
o fim da aula.
-
Eu sei, mas não é minha culpa se o computador travou. Como posso fazer todos os
trabalhos sem o computador?
O professor deu uma risada
bastante irônica.
-
Como fazíamos antes sem essas máquinas?
Olhei para ele com uma cara, ele
logo percebeu minha reação e disse:
- Nem sempre existiu essas
máquinas.
Ele falou lentamente, como se
eu fosse uma débil mental. Que raiva! Pensei
- Claro que sei, respondi.
- Então, você tem até o fim da
aula, Carla. Tem uma máquina de datilografia no armário. Ela não trava. Você
vai gostar. Vai conseguir.
Um sorriso cínico apareceu em
seus lábios, como se eu não fosse conseguir. Fui pegar a tal
máquina, era superpesada.
- É, já tinha ouvido sobre
ela, mas cadê o botão? Como liga?
Apertei uma tecla qualquer; fez
uns barulhos estranhos.
- Eita! Será que quebrei? Só
me faltava essa.
Júlia, que só sabia rir, veio
ao meu encontro para me ajudar.
-
Carla, pare de olhar assim com essa cara de pânico. A máquina não é nenhum
bicho.
- Não. Se fosse, eu saberia
como usar.
O problema é que estava com
medo dos barulhos que aquilo estava fazendo, mas precisava terminar os
trabalhos.
- Você não sabe usá-la. Disse Júlia
ao cair na gargalhada (só sabia rir). É fácil, Carla. Você coloca um papel
aqui...
Pegou o papel, colocou na
fenda e depois girou o botão. Fez mais barulho ainda, depois soltou a
haste e pronto.
- Parece fácil.
Júlia sendo Júlia, começou a
rir novamente. Ela não acreditou muito em mim. E voltou para o seu
lugar. Estava me concentrando, e experimentei digitar algo, mas não saiu
nada.
- Precisa apertar com mais
força. Júlia gritou de longe.
Tentei outra vez, deu certo. Digitei
muito desajeitada. Procurei a tecla delete, mas não achava.
- Júlia, onde fica a tecla
delete?
A sala toda começou a rir da
minha cara.
- Como? Pergunta Júlia
bem baixinho e responde dizendo que não tem
- Não tem delete?!
E mais uma vez a sala riu da
minha cara. Passei a manhã inteira tentando fazer os trabalhos,
depois de receber uma aula rápida sobre a tal máquina. Como as pessoas
conseguiram sobreviver sem o computador por tanto tempo? Levaria dias para
organizar minhas coisas. E como iria ver as postagens no Instagram? Eu não
conseguiria! Ficaria mais isolada e complicada. Daí a pouco sai da escola sem
o trabalho pronto e voltei para casa. Chego em casa e percebo que tenho
que arrumar meu quarto, estava tudo jogado. Fui tomar um banho, deixei a água
bem quente escorrer sobre minhas costas, precisava relaxar, de fato relaxei.
Vesti meu pijama e me deitei na cama, liguei a TV e fiquei esperando minha
comida ficar pronta. Meu celular toca.
- Você vai sair amanhã?
Pergunta antes mesmo de falar alô.
- Oi para você também, Agnes.
- Você vai amanhã, né? Não vai
me enrolar outra vez, Carla. Você sempre arruma uma desculpa para não sair de
casa. Amanhã você vai sair nem que eu tenha que lhe buscar.
- Calma, Agnes. Eu vou sim.
Não queria que ela aparecesse
com os amigos dela na minha casa.
- Tô mesmo precisando sair.
Essa semana foi muito ...
- Por isso mesmo quero que
você saia com a gente amanhã, preciso te contar umas coisas.
- Brigou com o Pedro outra
vez, Agnes?
- Não! Não é sobre o Pedro.
Fiquei curiosa com o "mistério" de
Agnes e no outro dia acordei na hora certa, graças a Deus, era
sexta-feira. Fui até à escola, sem a roupa suja e quase gritei de alegria
quando vi o meu computador novinho e folha, funcionando perfeitamente.
- Não me abandone mais!
- Tendo um caso com o
computador, Carla? Você precisa usar alguma proteção para não pegar
vírus.
Era João, o engraçadinho da
sala. Ao sair da escola fui direto para o bar, era lá que Agnes e os amigos
dela estavam.
- Carla, vou casar.
- Você vai o quê, Agnes?
- Casar!
- Você só pode está brincando
com minha cara. Garota, você ainda é muito nova. Tem certeza disso?
-
Sim! Ai, Carla, você fala como se um casamento fosse uma sentença de
morte.
- Mas vocês vivem brigando. Já
perdi as contas de quantas vezes você chega lá em casa chorando por ele.
- Eu sei, Carla. Mas estou
apaixonada por ele. Não consegue ver isso?
Claro que podia ver, vi desde
que Agnes o conheceu ficou louca por ele. No começo achei que ela tinha
acertado no garoto, mas depois ele começou a ser rude com ela.
- Eu sei que você gosta dele.
Todo mundo sabe, mas você tem certeza disso?
-
Não, não tenho certeza. Não temos certeza de nada quando se está apaixonada.
- Ah! Temos sim. Tudo bem,
Agnes.
Não queria falar mais nada para não a deixar
triste.
- Obrigada, Carla. Você é
minha melhor amiga, e a única que gosta do Pedro.
Agnes tinha brigado com os
pais logo quando começou a namorar Pedro. Obviamente, eles também não
tiveram uma boa impressão dele.
- Preciso ir ao banheiro. Acho
que a bebida me fez mal.
Eu não estava passando mal, só
um pouquinho. Mas precisava acabar com aquela conversa. Ao chegar ao banheiro
vomitei me sujando toda.
II
A luz do sol com toda sua
delicadeza me acordou.
- Ai, como minha cabeça dói!
Observei tudo em minha volta e
deitei novamente. Fiquei deitada por um bom tempo. Ainda estava com as mesmas
roupas da noite passada. Levantei lentamente, fui até a cozinha e tomei uma
xícara enorme de café, a sensação era que minha cabeça estava
explodindo. Deixei a água quente escorrer sobre minha cabeça. Não queria
lembrar nada da noite passada. Evidentemente, a comemoração da qual Pedro nem
sonhava, tinha saído do controle. Eu, talvez, tenha exagerado um pouco. Mas não
é todo dia que sua melhor amiga quer ser "namorida" de alguém, e meu
celular ainda tinha caído na privada. Logo eu, uma garota toda complicada
como conseguiria sobreviver sem o celular? Precisava comprar outro.
Sai do banho e me vesti, vesti
roupas leves, aquela manhã estava bastante quente. Peguei a bolsa, tomei mais
café e fui comprar meu celular. Já passava pela minha cabeça o trabalho que ia
ser organizar tudo no celular novo, mas não daria certo enfiar minha mãozinha
naquela privada para resgatar meu falecido aparelho.
Passei pela praça e notei que
havia poucas pessoas. O normal era que sempre havia famílias e pessoas fazendo
exercícios, mas naquela manhã estava completamente deserta. Entrei na
primeira loja e fui direto para o balcão dos celulares, estranhei não havia
ninguém na loja, apenas uma vendedora. Será que era feriado e não sabia? Estava
confusa, preste a sair quando a única vendedora se aproximou de mim e
perguntou:
-
Procura celular? Qual modelo você gosta?
-
Não estou a procura de modelos e sim de um celular que faça tudo.
-
Tudo?
- Sim. Fotografia, jogos,
e-mails, enfim, tudo.
- Você gosta de muita
tecnologia, né?
- Quem não gosta hoje em dia?
O celular é minha salvação.
Todos dão tanta importância a
um celular que às vezes, eu só queria ser um. Ninguém quer ficar perto de uma
garota complicada, talvez se eu fosse um celular ...
- O celular é sua
salvação? Pergunta ela com um sorriso meio irônico.
- O celular se torna mais
amigo do que meus próprios amigos. Você tem o que eu quero? perguntei um
pouco agressiva.
- Acho que tenho o que você
precisa.
Ela abriu a gaveta do balcão
chamando minha atenção.
- Tem esse aqui, ele é o
último da unidade. Ele é muito bom.
-
Acho que vou levar.
- Certeza?
Eu estava me segurando para não voar em cima
daquela mulher.
- Tenho.
Ela me olhou com uma cara triste. Não entendi.
Será que ela pretendia vender a outra pessoa - pensei.
- Você não poderá devolver e
nem trocá-lo, pois ele é o último da unidade.
- Ele tem
garantia? Perguntei já desconfiada.
- Tem sim. Mas como é o último
da unidade não tem como devolvê-lo.
- Mas ele funciona bem?
- Funciona perfeitamente. Ele
é tudo o que você precisa.
- Então, eu fico.
- Que ótimo! A forma de
pagamento será no cartão?
Desgrudei rapidamente do meu novo
monstrinho para procurar meu cartão. Procurei, mas não encontrava meu
cartão, coloquei minha bolsa sobre o balcão e voltei a procurar.
- Ufa! Encontrei.
- Está aqui.
-
Volto num instante, Carla.
-
Como sabe meu nome?
- Tem no cartão, querida.
- Ah!
Pra mim, ela não tinha olhado
nenhuma vez para o cartão. Ela saiu e me distrai rapidamente olhando para
meu novo celular. Tinha certeza que caberia mil textos nele, aquilo era
importante para mim.
- Pode assinar aqui.
- Tudo certo?
- Tudo absolutamente certo.
Espero que ache a felicidade que procura. Boa sorte, Carla. Espero vê-la em
breve.
- Sim sim. Até logo!
Mulher estranha. Muito
estranha, mas tinha outras coisas para me preocupar como: ajeitar meu novo
celular. Segurei o aparelho na mão. Apertei no botão ligar, mas nada. Virei
para o lado e não encontrei nada. Não me admira ser tão barato. Por isso a
vendedora estava estranha. Parei na praça praticamente deserta e tentei
mais uma vez. Mas nada aconteceu. Voltei até a loja, e quando ia falar
umas coisas para a vendedora o celular liga. E cada vez se torna mais forte a
luz me cegando completamente. Cega pela luz, acabei tropeçando e cair no chão.

A indicação de leitura hoje é
O Melhor das Comédias da Vida Privada, de Luis Fernando Veríssimo. Deus vos
abençoe.
Amanda Rocha é professora e
escritora
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