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Sem Aspas | Encontros - por Amanda Rocha

 

Chegava-lhes dezembro com odores de infância: árvore de Natal montada e meias aguardando a chegada dos presentes. Luzes adornavam as árvores defronte das casas, deixando a rua mais bela e agradável. Era lindo ver tudo aquilo iluminado, ainda mais ao som de O Messias, de Georg Friedrich Händel. O vinho antigo deitava-se nas antigas taças de cristal, brindavam os filhos já formados e os netos recém-chegados. Contavam os segundos para a chegada da segunda década do século, e os minutos para a primeira viagem pós aposentadoria. Mergulhar nas águas mornas das praias nordestinas seria a concretização de um sonho. Sol, mar, água de coco, Canoa Quebrada, Pipa, Coqueirinho, Porto de Galinhas, Maragogi. Suspiravam ao planejar. 

Após o jantar ele escorregava pelo sofá desviando-se do pedido dela para organizar as gavetas, mas as técnicas de convencimento utilizadas por ela eram infalíveis. Não tardou para erguer-se. Lançou os chinelos para próximo da escrivaninha e decidiu trocar o presente que vestia por sua velha bermuda de tecido sintético. O calor do verão aquecia-lhes também a alma. De pé, repousou diante da porta do quarto aberta e ensaiou uma declaração, queria dizer-lhe que ainda a via tão ou mais bela que quando se conheceram. Não disse nada, apenas sorriu levemente e atendeu aos olhos apreensivos e nariz altivo que apenas ela possuía.

Ao passo que reviravam cada foto, as recordações tomavam-os de assalto. Por algum tempo sentiram-se jovens outra vez. Ele faria 60 anos, ela 55, mas gozavam de bônus genético. Aparentavam menos idade. Acrescente-se a isso, as horas diárias de atividades físicas, uma alimentação balanceada, algumas taças de vinho semanal e muitas boas histórias para contar. Posto o segredo da longevidade.


Foto: Freepik


Entre os muitos arquivos, ele encontrou uma foto amarelada, pequena. A data escrita no verso remetia ao início do namoro trinta e oito anos atrás. “Ainda bem que  a tecnologia não estancou na década de 80, estou terrivelmente cafona nesta foto”, com sorrisos e reclinando a cabeça para mirar a foto recostada nas mãos dele. “Está linda!” retrucou ele mirando a foto como se fosse a primeira vez que fitasse sua companheira. Pôs a foto num de seus blazers, o cinza escuro que ficava comumente no cabideiro próximo à porta da suíte. Volveu-se para ela, encostou seus lábios nos dela e disse-lhe que ela era o melhor presente de toda sua vida. O fulgor da juventude tomou-os e abrasaram-se, olvidando as gavetas.

Contados os dias para a viagem, frustraram-se com o agravamento das medidas restritivas para conter o avanço de uma agressiva pandemia. Ela tranquilizou-o dizendo que seria apenas um breve adiamento e que poderiam comemorar suas jubilações e aniversário de namoro em qualquer mês. A felicidade e planos natalinos foram frustrados após o carnaval, antes mesmo da aposentadoria, planejada para o fim do terceiro mês. Meados de março e o mundo paralisou. Correram à agência de viagem  para remarcar as férias. Enquanto aguardavam concluíram a organização das gavetas e das lembranças nelas guardadas. 

O mês de abril já se aproximava. Eles sorriram até a tosse e o pesar no peito atormentá-la. Ele levou-na para a urgência do hospital mais próximo, mas não pode prever que aquela seria a última vez que seus olhos contemplariam a beleza de sua amada. O diagnóstico tardava a sair, mas os médicos diziam não duvidar que ela era mais uma vítima. Queriam apenas impedir que ela se tornasse uma cifra, um número em listas de contagens de mortos. Os esforços não alcançaram seu propósito. Foram poucos e longos os dias até a trágica informação: ela não resistiu. Nesse dia, ele dirigiu por muitos quilômetros, dirigiu por lugares onde costumavam frequentar. Todos fechados. Enquanto dirigia, contemplava o infinito onde ela gozava de alegria e saúde, num corpo restaurado e lágrimas colhidas. Mas resistia, não queria aceitar. Lembrou-se dos momentos em que ela o ensinou a importância de respirar leve, abraçar os filhos e tomar um café. Mas a angústia lutava com suas boas memórias e o desgosto atordoou-o.  

Rejeitou as ligações de seus filhos e encontrou na fraqueza motivos para desistir, mas não podia. Lembrou-se dos planos, das viagens e decidiu apagar qualquer lembrança do futuro que não produziram. Mirou ao fim da rua um grande supermercado, por certo tinha um Caixa 24h. Decidiu que iniciaria sacando as economias que usariam na viagem pelo nordeste e destruiria seja como fosse. Ao chegar ao mercado, percebeu uma família carente, que apesar de silenciosa pedia com a alma quebrantada um pouco de acalento. Estacionou e depois passou caminhando por eles sem direcioná-los o olhar. O outono se aproximava e as temperaturas tendiam a baixar. Sua alma que queimava em febre, ampliava a sensação de frio. Pôs a mão dentro de um dos bolsos de seu blazer cinza e certificou-se de que tinha um envelope lá guardado. Entrou, sacou o dinheiro, colocou-no dentro do envelope e saiu.  

Ao passar próximo daquela família outra vez, foi surpreendido com o menino que levantou-se e correu em sua direção. “Senhor, senhor! Tome! Caiu quando o senhor entrou”. Era a foto. Caíra de seu bolso e o vento tratou de levar para perto do menino. Ele guardou-a por baixo de sua camisa enquanto esperava o retorno de seu dono. 

Sem ao menos balbuciar uma única palavra, tomou a foto para si, contemplou-a por alguns segundos. Quando o menino dava-lhe de costas para retornar para próximo aos seus pais, ele o chamou. “Ei menino, vem cá!” Retirou do bolso o envelope e entregou à criança. Não disseram mais nada um ao outro, o olhar bastava à compreensão. Ele seguiu, entrou em seu carro, segurou nas mãos aquela foto e chorou recordando a beleza que havia na companhia de sua esposa. Sua partida afligia seu coração e eis ali a última recordação. 


Amanda Rocha é professora e escritora



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